Um outono na Alemanha

Da invenção da tipografia às 95 teses de Lutero: a história de como a comunicação em massa fraturou a Igreja Católica e mudou o mundo.

Cadu Carvalho
9 min readJan 15, 2019
“Lutero pregando suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg”, por Ferdinand Pauwels, 1872, óleo sobre tela. Eisenach, Wartburg-Stiftung.

2010, Tunísia. Um vendedor de rua ateou fogo em si como protesto contra o abuso de autoridade da polícia. Seu sacrifício insuflou a população contra o autoritarismo na política, e a Revolução de Jasmim trouxe para o país sua primeira eleição democrática.

Em vários países próximos, ativistas organizaram manifestações semelhantes, na ambição de trazer regimes verdadeiramente democráticos para seus países. Como as mídias tradicionais — TV, rádio, jornais — eram controladas pelo poder vigente, a palavra da Primavera Árabe espalhou-se pela Internet, entre plataformas de mídias sociais, como os únicos meios possíveis de comunicação em massa.

Fenômenos como a Primavera Árabe são momentos em que a sociedade, enfim, entende o verdadeiro potencial transformador de uma nova mídia de massa. Neste artigo, vamos voltas algumas centenas de anos no tempo, quando uma prensa foi protagonista de uma revolução similar que ajudou a mudar a história.

Quando Gutenberg volta a Mainz

(Sim, estou voltando um pouco mais do que vocês pensavam, mas calma que a gente volta logo à meada; contudo, acho que vale um aviso antes de continuar. Este que vos escreve não tem formação em história, mas sim em design, portanto algumas partes tendem a abordar mais aspectos de produção gráfica do que o contexto sócio-político.)

Uma réplica contemporânea da prensa tipográfica utilizada por Gutenberg.

Estamos no início do séc. XV. Johann Gutenberg, quando volta de Strasbourg para sua cidade natal Mainz, se vê numa situação apertada: sem nenhum dinheiro, buscando investimento para fazer funcionar as ideias loucas que tinha na cabeça. Quase um startupeiro.

É incerto se Gutenberg chegou a conhecer os tipos móveis chineses inventados na China por Bì Shēng muitos anos antes. Durante seu tempo morando num quarto escondido, Gutenberg fez vários experimentos com gravação de blocos inteiros de madeira; posteriormente, começou a experimentar com letras separadas e compostas manualmente. Ciente de que sua futura invenção poderia ter um grande impacto cultural, ele buscava manter tudo em segredo de qualquer pessoa.

Com o pitch de que livros poderiam ser mais acessíveis às pessoas e não precisariam custar uma fortuna (até nisso era startupeiro o rapaz), Gutenberg convenceu o advogado e ourives Joahann Fust a investir na sua ideia. Com o investimento inicial, ele conseguiu, enfim, resolver as principais falhas de seu novo sistema de imprimir: os tipos de madeira rígida foram substituídos por chumbo gravado; a tinta passou a ser feita com óleo para que aderisse às matrizes e secasse rapidamente no papel; e a prensa de uvas foi adaptada para pressionar as matrizes de chumbo contra o papel. Nascia a prensa tipográfica.

Uma Bíblia de 42 linhas, impressa por Gutenberg entre 1450 e 1455, exposta na New York Public Library.

Como toda invenção de sucesso, a prensa tipográfica e os tipos móveis de chumbo não tardaram a alastrar-se pela Alemanha e o restante da Europa. Não antes de Gutenberg ser processado pelo sócio, perder o processo, montar outra oficina e, mesmo assim, morrer na pobreza.

O importante em mencionar Gutenberg não é apenas sobre a história de sua invenção, mas sim o primeiro grande produto de sua invenção. Mesmo entre o clericado, poucos tinham acesso a uma Bíblia, pois demoravam-se dezenas de anos até que um volume fosse completamente manuscrito e preparado; para o alemão, nada melhor para estrear sua invenção e ganhar o respaldo da Igreja Católica do que imprimir seu livro mais importante.

Existe incerteza sobre uma possível perseguição da Igreja a Gutenberg por causa da prensa: os volumes produzidos por Gutenberg continham todos os livros originais em latim, o que compreende uma Vulgata. Anos mais tarde, várias oficinas tipográficas da Europa eram controladas pela Igreja: cada publicação exigia aprovação clerical para que fosse distribuída, e quaisquer traduções dos textos sagrados para idiomas locais eram reprimidos.

Mesmo esse controle não impediu que publicações condenadas pela Igreja, como o Malleus Maleficarum (falarei dele daqui a pouco), fossem impressas e distribuídas em grandes quantidades. De qualquer forma, entre outros motivos, o controle sobre a informação seria o grande objeto de questionamento de um monge em outro canto da Alemanha.

“Amore et studio elucidande veritatis”: um exemplar das 95 teses de Lutero, impresso em 1517.

A reforma impressa

Existe também debates sobre se Martinho Lutero realmente pendurou suas 95 teses nas portas das igrejas de Wittenberg, no fim do outubro de 1517. Essa data é comumente ensinada como o marco da Reforma Protestante, mas para fins deste texto, vamos assumir como mais interessante o que veio depois.

Embora o sonho de Gutenberg fosse democratizar a escrita e popularizar o conhecimento, as prensas tipográficas ainda serviam a um público muito seleto. Contando com clérigos, docentes, alunos e a elite urbana, apenas 9% dos habitantes dos reinos que compõem a Alemanha atual era alfabetizada. A produção textual limitava-se aos caros volumes aprovados pela Igreja, e a única oficina tipográfica de Wittenberg limitava-se a imprimir pequenas teses dos alunos locais.

Após Lutero expôr seu descontentamento com a Igreja Católica — especialmente na questão do comércio de indulgências — , Lutero começou o trabalho de expôr sua visão religiosa às pessoas de forma mais compreensível para elas. As cópias das 95 teses foram impressas em latim, mas logo passou a distribuir panfletos e ensaios escritos em alemão. Ao invés das 95 teses, seu Sermão da Indulgência e Graça, de 1518, escrito na língua local e reimpresso dezenas de vezes naquele ano, foi o que realmente introduziu o povo às suas ideias.

Exemplar do “Sermão da Indulgência e Graça”, de 1518, impressa em Wittenberg. Taylor Institution Library, Oxford.

Tamanho foi o sucesso do sermão de Lutero, a demanda por novas cópias cresceu vertiginosamente. Do ponto de vista do design gráfico, um motivo para o sucesso era a facilidade de ser impresso: seu texto de 1500 palavras cabia numa única folha de papel dobrada em quatro partes, permitindo que até a pequena oficina de Wittenberg pudesse imprimi-la. Socialmente, o texto simples, direto e escrito em alemão, opunha-se radicalmente ao modo com que a Igreja Católica difundia suas posições; caso um alemão não pudesse ler seu sermão, facilmente encontraria algum arauto pela cidade em busca de ouvidos atentos.

Não menos importante, para os impressores de Wittenberg e, pouco depois, cidades vizinhas, atender a demanda de Lutero correspondia a um retorno financeiro imediato. Em 1519, Lutero era o autor mais publicado da Europa, e o primeiro autor a ter seu nome em destaque nas capas de livros. Suas 95 teses foram traduzidas para alemão e cópias espalharam-se entre a população letrada. Vendo esse crescimento assustador das ideias de Lutero, a Igreja Católica respondeu bravamente… com sermões em latim. Nenhum clérigo ousaria reproduzir os escritos e o santíssimo discurso teológico em línguas aquém de sua dignidade. Afinal, prioridades.

“Lutero descobre a Bíblia”, por Ferdinand Pauwels, c. 1860–1903, óleo sobre tela. Eisenach, Wartburg-Stiftung.

O primeiro viral da história

Voltando um pouco no tempo, em 1487, o clérigo Heinrich Kramer mandou para os impressores seus escritos sobre como identificar, combater, criminalizar e exterminar bruxas. Baseado numa bula do Papa Inocêncio VIII (e reproduzindo-a ipsis litteris), lançou o Malleus Maleficarum e conseguiu a proeza de, três anos depois, ser condenado pela inquisição católica. Embora não fosse um livro endossado pela Igreja, a histeria pela caça às bruxas fez com que, por 200 anos, os escritos de um clérigo malquisto até pela própria Igreja fosse um dos livros mais vendidos do mundo. Mesmo depois, as práticas de doutrinas cristãs ultraconservadoras, como os puritanos de Salem, proviam muita demanda ao livro.

Voltemos a Lutero. O ano de 1520 foi o mais produtivo da vida do reformista, em que publicou seus mais famosos livros por todo o território germânico. As vendas eram absurdamente grandes, tamanha era a demanda por uma visão religiosa compreensível pela população. Durante os anos da Reforma Protestante, a indústria gráfica alemã foi praticamente monopolizada pelos textos de Lutero,maior até que a demanda pelo Malleus Maleficarum dezenas de anos antes. Esse fenômeno de mercado impediu que outros autores — incluindo detratores do teólogo alemão — tivesses seus trabalhos impressos e distribuídos. Os impressores trabalhavam, em sua maioria, apenas com pagamentos à vista.

Lutero tinha a seu lado a população alemã, inspirada por sua retórica compreensível. Tinha também a nobreza e burguesia local, ansiosos para romper com a autoridade papal e a ética católica que contrapunha-se ao espírito capitalista, e credores da grande quantidade de impressos encomendados por Lutero. Antes fomentada por razões religiosas, a Reforma Protestante assume um caráter político emancipatório, que culmina com a definitiva excomunhão de Lutero em 1521 e a violenta expulsão da Igreja Católica do território germânico no mesmo ano.

Bíblia Luterana de 1534, após o teólogo finalizar suas traduções do novo e antigo testamento.

Nos anos seguintes, as gráficas alemãs continuaram imprimindo Lutero constantemente: em 1522, a tradução em alemão para o Novo Testamento foi impressa e distribuída. Além da Bíblia, dezenas de manuscritos produzidos pelo teólogo rapidamente saíam das prensas para as livrarias. A eficiência com que suas ideias eram distribuídas para os leitores e ouvintes, que apenas a prensa tipográfica oferecia na época, foi crucial para que a Reforma fosse bem-sucedida na Alemanha e, por fim, desse origem à Igreja Protestante Luterana no mesmo ano.

A tipografia desempenhou um importante papel para a consolidação do Luteranismo; com a mesma velocidade e eficiência que produziu os livros de Lutero, a indústria gráfica alemã produziu as gramáticas que as escolas públicas fundadas pela nova igreja utilizou para ensinar crianças a ler e escrever. O ensino público ajudou também a unificar a língua alemã. De 1475 a 1550, a alfabetização na Alemanha quase dobrou para 16%. Em 1605, quase 60 anos após a morte de Lutero, surgiu no país o primeiro jornal da história.

Capa da “Doze artigos de Memmingen” de 1525, impresso durante a Guerra dos Camponeses.

A eficiência da indústria gráfica alemã também foi importante para que Lutero pudesse responder rapidamente à propaganda Católica infiltrada e sedimentasse suas ideias na população contra visões subversivas de seus ensinamentos. Entre essas subversões, consta a Guerra dos Camponeses, ocorrida entre 1524 e 1525, em que Thomas Münzer, ex-discípulo de Lutero, lutou por uma radicalização da Reforma de forma a extinguir diferenças entre classes sociais. Lutero, sustentando que era por vontade divina a existência de “servos e senhores”, condenou a revolta empreendida por seu antigo discípulo, em que morreram 100 mil camponeses.

A facilidade com que textos, ilustrações e gravuras de Lutero espalhavam-se pela Alemanha é comparável à velocidade com que memes se espalham atualmente pelas plataformas modernas de redes sociais. Com a apropriação da tipografia, xilogravura e outros meios de reprodução gráfica, o teólogo conseguiu espalhar sua mensagem como nenhum outro agente conseguira até então. Sendo Gutenberg o inventor da prensa tipográfica europeia, Lutero é comumente citado como o inventor da mídia de massa.

Compreender a profundidade da Reforma Protestante na Alemanha e outros países, no espectro social, é uma discussão semelhante a como as mídias sociais de hoje ajudam a difundir ideias (certas, erradas e muito erradas), fomentar revoluções e moldar a forma com que pensamos e agimos sobre política, cultura e sociedade. Também trata-se sobre como lidar com uma quantidade grande e não prevista de informação para um público que não está preparado para lidar com tanta informação vinda “de graça”, e ver como esse público reage repetindo o conteúdo com apenas alguns poucos questionando veracidade, checando fontes, seguindo a money trail e vendo seus reais interesses.

Afinal, toda época tem o zapzap que merece. ;)

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